segunda-feira, 28 de junho de 2010

A não tão santa cruz das mulheres e crianças de Santa Cruz

Visitei um bairro localizado perto do anel cinco da cidade boliviana de Santa Cruz. São 11 da manhã de uma quarta-feira e o que mais chama a atenção são jovens abarrotando fliperamas precários com jogos instalados em computadores pré-históricos. Não tem delegacia de polícia aqui e só há uma escola. Um pastor brasileiro que realiza trabalhos pastorais neste bairro, nos pede para visitar a Blanca e seus três filhos menores. De um barraco bagunçado sai ela e as crianças.

Santa Cruz de la Sierra é uma pujante cidade boliviana. Com quase 2 milhões de habitantes, é maior que La Paz e El Alto. Em 1976, sua população não chegava a 325 mil pessoas. Migrantes de diferentes lugares da Bolívia chegaram buscando terras, mas querendo aproveitar sobretudo o boom econômico provocado pela exploração de hidrocarbonetos, pela construção e pela agroindústria. Por isso que a população se dedica ao setor de serviços e a informalidade chega a quase 60%. Santa Cruz concentra população de diferentes origens: descendentes de espanhóis, da etnia guarani, quíchuas, aimarás, etc, mas também migrantes de outras partes do mundo como alemães, italianos, iugoslavos, brasileiros, japoneses, chineses, libaneses, palestinos.

Como muitas cidades sul-americanas, Santa Cruz materializa os contrastes da concentração de riqueza em poucas mãos e um grande número de gente pobre, que sobrevive com magros salários.

Desenhada em anéis que segmentam a cidade em até seis zonas, Santa Cruz pode surpreender por seus grandes edifícios localizados a pouca distância de bairros pobres. Os contrastes se refletem também na carência de proteção, especialmente de crianças e mulheres em situação de pobreza.

Blanca é uma mulher de 32 anos de idade, olhar desviado e uma fala entrecortada. Angie é sua filha mais velha, de apenas 12 anos. Os outros dois filhos aparentam ter entre 10 e 7 anos de idade. O pastor pede a Blanca que conte sua história.

“Me casei apaixonada, impressionada com seu jeito de falar, sua maneira de ajudar outras pessoas, seu amor aparente pelas famílias que sofriam”, começa. “Mas um dia me dei conta de que me enganava com outra mulher. Lhe encarei, dizendo que a Bíblia diz ‘Ninguém pode servir a dois senhores’ e, portanto, muito menos a duas mulheres. Mas ele não fez caso, me disse que era um servo do Senhor, que a outra mulher lhe fazia feliz e eu não”, menciona doloridamente. Continua dizendo que desde então ele começou a maltratá-la física e verbalmente. Ela lhe pedia que fosse embora, que a deixasse, que se encarregaria sozinha de manter seus filhos. Logo ficou sabendo que não andava só com uma, mas com várias mulheres, todas elas da igreja na qual apoiava como copastor. Cansada, Blanca decide falar. Pede uma reunião aos líderes da igreja e lhes conta seu drama. Eles terminam dizendo a ela: “Você precisa ter paciência; reconciliem-se, ele tem um ministério para cuidar”.

Na medida em que vai falando, suas pernas começam a tremer, os olhos vão caindo. Angie, sua filha, diz a ela com voz firme: “Fique tranquila, mamãe. Esse homem nunca mais colocará as mãos em cima de você. Eu vou cuidar de você”. Logo Angie retoma a conversa. Um dia, o marido chega furioso em casa, incomodado com tudo e com todos. Quis maltatar seus irmãos e Blanca lhe impediu. Descontrolado, toma um bastão de ferro e bate várias vezes na sua cabeça, lhe deixando desmaiada. Angie só se lembra que saiu para pedir ajuda. Levaram sua mãe ao hospital. Sem dinheiro e com o apoio de vizinhos, pôde ser salva da morte mas as sequelas foram definitivas. O marido fugiu. Hoje Blanca só sabe que ele continua vinculado a um grupo religioso. Desde essa data, Blanca quase enlouqueceu. Andava seminua na rua, comia excremento, dormia, às vezes, em carros abandonados. Chegou a pesar 42 quilos. Angie, quando a encontrava, literalmente lhe arrastava até sua casa. Em uma ocasião, membros de um grupo religioso lhe encontraram na rua e pensaram que a melhor maneira de ajudá-la era lhe submetendo a um exorcismo. Levaram ela à igreja e com gritos, golpes no rosto e fazendo-a revolver-se no chão, tentaram em vão expulsar os demônios que supostamente a escravizavam. Eventualmente, Angie pôde lhe tirar desse culto absurdo à vaidade religiosa.

Meses depois, chegou ao bairro o pastor brasileiro. Com cuidado e amor pelas pessoas do lugar, formou um grupo de estudo da Bíblia. Ali conheceu Blanca, Angie e outras famílias e crianças abandonadas. Foi então que canalizou ajuda médica e humanitária para Blanca. O caso dela lhe sensibilizou e desde então enfatiza a necessidade de que o evangelho traga justiça a mulheres como Blanca.

“Angie, você tem muita força dentro de você. Ainda crê em Deus?”, lhe pergunto com vergonha. Sorrindo alegremente, me diz que sim. Mas volta a reiterar: “Esse homem nunca mais tocará em minha mãe. É mau, inclusive vendeu um dos meus irmãos para uma tia que não podia ter filhos”. Eu olho para ela e sei que no caminho, esta menina foi obrigada pelas circunstâncias a ser adulta. A ser mãe da mãe, mãe dos irmãos, mãe de si mesma. Alguns pesquisadores mencionam que entre os 7 e 14 anos é a etapa de formação dos sentimentos. Meninas como Angie tiveram que pular etapas, tornarem-se fortes. É a morte da infância por conta da deserção dos adultos. Todos conhecemos meninos e meninas transformados prematuramente em adultos. Vivem ao nosso redor. Sobrevivem.

Santa Cruz testemunha como mulheres e crianças carregam diariamente uma cruz pesada para elas. Cruz de dor e espanto. Na Bolívia, segundo estatísticas oficiais, em cada 100 casais, 14 mulheres sofrem lesões (feridas e fraturas) nas mãos de seus esposos ou companheiro masculino. Santa Cruz tem a mais alta taxa de violência sexual contra meninos e meninas na Bolívia.

Os meios de comunicação ressaltam notícias relacionadas com a violência provocada pela delinquência comum, as guerras ou o terrorismo. Hoje sabemos que a violência intrafamiliar causa mais morte no mundo que os conflitos armados e as guerras civis. Essa violência que acontece detrás das portas dos lares já é um delito contra a humanidade, de interesse público. A sociedade política e civil, as igrejas não podem mais ficar de costas para esta realidade. A luta quase solitária empreendida há décadas principalmente por pessoas e grupos vinculados a grupos feministas, intelectuais progressistas e minorias religiosas não pode continuar assim. Deve ser uma luta massiva, frontal, definitiva.

Nunca mais devemos tolerar condutas justificadas em textos mal interpretados da Bíblia, usados para sustentar a violência física, psicológica ou sexual contra as mulheres. O poder utilizado contra mulheres e meninas é uma injustiça que Deus abomina. Aqueles que nos designamos como cristãos, não podemos tolerar histórias como as de Blanca e Angie. Basta de cruzes para elas. Basta.

Alfonso Wieland

Alfonso Wieland é advogado no Peru e diretor de programas internacionais da Asociación Paz y Esperanza (www.pazyesperanza.org), organização cristã de direitos humanos e desenvolvimento comunitário que ele ajudou a fundar em 1996. Ele é graduado em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, e tem pós-graduação em Sociologia pela Pontificia Universidad Católica do Peru e em Teologia pelo London Institute for Contemporary Christianity. É parte, desde 2001, do comitê de coordenação internacional da Rede Miquéias; é casado, tem dois filhos e é membro da Igreja Aliança Cristã e Missionária.
 
FONTE: http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=169

Nenhum comentário:

Postar um comentário