terça-feira, 11 de agosto de 2009

Neopaganismo Evangélico

Teologia pentecostal se afasta da tradição judaico-cristã ao atribuirao mal uma potência independente de Deus e dos homens

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Colunista da Folha

Estava passeando pela TV quando dei com um culto da Igreja Mundial do
Poder de Deus. Teria rapidamente mudado de canal se não tivesse
acabado de ler o interessante livro de Ronaldo de Almeida, "A Igreja
Universal e seus Demônios – Um Estudo Etnográfico" [ed. Terceiro Nome,
152 págs., R$ 28], que me abriu os olhos para o lado especificamente
religioso dos movimentos pentecostais. Até então, via neles sobretudo
superstição, ignorando o sentido transcendente dessas práticas
religiosas.

No culto da TV, o pastor simplesmente anunciou que, dado o aumento das
despesas da igreja, no próximo mês, o dízimo subia de 10% para 20%. Em
seguida, começou a interpelar os crentes para ver quem iria doar R$
1.000, R$ 500 e assim foi descendo até chegar a R$ 1.

Notável é que o dízimo não era pensado como doação, mas simplesmente
como devolução: já que Deus neste mês dera-lhe tanto, cabia ao fiel
devolver uma parte para que a igreja continuasse no seu trabalho
mediador. Em suma, doar era uma questão de justiça entre o fiel e
Deus.

Em vez de o salário ser considerado como retribuição ao trabalho, o é
tão só como dádiva divina, troca fora do mercado, como se operasse
numa sociedade sem classes. Isso marca uma diferença com os antigos
movimentos protestantes, em particular o calvinismo, para os quais o
trabalho é dever e a riqueza, manifestação benfazeja do bom
cumprimento da norma moral.

Se o salário é dádiva, precisa ser recompensado. Não segundo a máxima
franciscana "é dando que se recebe", pois não se processa como ato de
amor pelo outro. No fundo vale o princípio: "Recebes porque doastes".
E como esse investimento nem sempre dá bons resultados, parece-me
natural que o crente mude de igreja, como nós procuramos um banco mais
rentável para nossos investimentos.

O crente doa apostando na fidelidade de Deus. Os dísticos gravados nos
carros, "Deus é fiel", não o confirmam? Mas Dele espera-se
reciprocidade, graças à mediação da igreja, cada vez mais eficaz
conforme se torna mais rica. Deus é pensado à imagem e semelhança da
igreja, cujo capital lança uma ponte entre Ele e o fiador.

ANTICALVINISMO
Além de negar a tradicional concepção calvinista e protestante do
trabalho, esse novo crente não mantém com a igreja e seus pares uma
relação amorosa, não faz do amor o peso de sua existência.

Sua adesão não implica conversão, total transformação do sentido de
seu ser; apenas assina um contrato integral que lhe traz paz de
espírito e confiança no futuro. Em vez da conversão, mera negociação.
Essa religião não parece se coadunar, então, com as necessidades de
uma massa trabalhadora, cujos empregos são aleatórios e precários?

Outro momento importante do livro é a crítica da Igreja Universal ao
candomblé, tomado como fonte do mal. Essa crítica não possui apenas
dimensões política e econômica, assume função religiosa, pois dá
sentido ao pecado praticado pelo crente. O pecado nasce porque o fiel
se afasta de Deus e, aproximando-se de uma divindade afro-brasileira,
foge do circuito da dádiva. Configura fraqueza pessoal, infidelidade a
Deus e à igreja.

Nada mais tem a ver com a ideia judaico-cristã do pecado original. Não
se resolve naquela mácula, naquela ofensa, que somente poderia ser
lavada pela graça de Deus e pela morte de Jesus, mas sempre requerendo
a anuência do pecador.

Se resulta de uma fraqueza, desaparece quando o crente se fortalece,
graças ao trabalho de purificação exercido pelo sacerdote. O fiel
fraquejou na sua fidelidade, cedeu ao Diabo cheio de artimanhas e
precisa de um mediador que, em nome de Deus, combata o Demônio. O
exorcismo é descarrego, batalha entre duas potências que termina com a
vitória do bem e a purificação do fiel.

PAGANISMO
Compreende-se, então, a função social do combate ao candomblé: traduz
um antigo ritual cristão numa linguagem pagã. Os pastores dão pouca
importância ao conhecimento das Escrituras, servem-se delas como
relicário de exemplos. Importa-lhes mostrar que o Diabo, embora tenha
sido criado por Deus, depois de sua queda se levanta como potência
contra Deus e, para cumprir essa missão, trata de fazer o mal aos
seres humanos.

O mal nasce do mal, ao contrário do ensinamento judeu-cristão que o
localiza nas fissuras do livre-arbítrio. Adão e Eva são expulsos do
Paraíso porque comeram o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do
Mal e assim se tornam pecadores, porque agora são capazes de
discriminar os termos dessa bipolaridade moral.

Essa teologia pentecostal se aproxima, então, do maniqueísmo. Como
sabemos, o sacerdote persa Mani (também conhecido por Maniqueu), ativo
no século 3º, pregava a existência de duas divindades igualmente
poderosas, a benigna e a maligna. Isso porque o mal somente poderia
ter origem no mal. A nova teologia pentecostal empresta o mesmo valor
aos dois princípios e, assim, ressuscita a heresia maniqueísta,
misturando o cristianismo com a teologia pagã.

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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e pesquisador do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção
"Autores", do Mais!.

Um comentário:

  1. vcs deveriam ter VERGONHA de colocar um texto do agressor deste professor num site que ze diz em luta pelas mulheres agredidas.

    "O primeiro fato ocorreu em São Paulo em 1980, quando uma mulher, militante feminista, branca, da classe média, foi espancada por ser marido, um professor da Universidade de São Paulo, José Arthur Giannotti, branco, intelectual e reconhecido como progressista. Ela fez denúncia desse fato em praça pública, nas escadarias do Teatro Municipal. A denúncia repercutiu e contribuiu efetivamente para romper com o pacto de silêncio. Até então, acusavam-se apenas homens negros, pobres, analfabetos e alcóolatras de praticarem violência contra a mulher. Mas aquele homem denunciado, o professor Giannotti, não tinha as características de "agressor". Não era negro, nem pobre, nem ignorante. Um exemplo perfeito para mostrar que a violência contra a mulher é praticada em todas as classes sociais, nas diferentes raças e etnias, e também não está vinculada ao grau de instrução."

    (Violência contra a mulher e a impunidade: Uma questão política, União de Mulheres de São Paulo, 2007: 3°edição, p.13)

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